Não consigo descrever o que senti
naquele momento. Foi uma chance, apenas uma. E fugi. Talvez isso já tenha
começado da primeira vez que a vi sentada naquele sofá. As pernas dobradas,
cabelos longos e soltos, um olhar lânguido e sorriso dissimulado. Pareceu uma
cena de filme: eu entrando, meio que perdido sem ter onde ir, esperando
encontrar algum conhecido para sentir-me mais familiarizado com o ambiente, e
dou de cara com toda aquela beleza esparramada pelo sofá. Dei um “oi” tímido,
quase que as palavras não saem da minha boca. Ela voltou o olhar para mim e
retribuiu com um “olá” firme e um sorriso que encheu a sala. Tremi, suei frio.
E agora?
Fiz de conta que procurava alguém que não achei e
sai da sala. Demorei uns dez minutos para recompor-me e entender minha atitude.
Depois daquele “encontro” relâmpago ela tornou-se meu amor platônico, minha “musa
imaginária”. Nunca interpretei aquele “oi” sexy como algo concreto. Para minha
ingenuidade juvenil ela era assim, sempre simpática com todos. Muito tempo
depois pude compreender que ali havia uma brecha e que meu “platonismo” poderia
tornar-se algo real. Porém emocionalmente eu era muito imaturo. Era alguém
incapaz de acreditar que uma garota como aquela iria querer alguém como eu.
Tinha uma autoimagem degenerativa e muito deturpada. Resultado de uma série de
perdas e fracassos que minaram minha autoestima.
Mas eis que um dia, quase um ano após
essa primeira vez em que nos esbarramos, encontro minha musa em uma festa. Ela
já de cabelos mais curtos e um visual “cult”. Por que além de linda e sexy ela
era uma intelectual. O que fazia com que eu tremesse mais ainda perto de sua
presença. Toda minha inteligência e saber acadêmico – que talvez fosse minha
maior qualidade – sumiam perto dela. Porém aquele dia tudo foi diferente.
Quando chegamos, eu mais meus amigos junkies (só andava com as piores
espécies), a festa estava um “porre” (no mau sentido). Quero dizer, todos
estavam extremamente comportados e civilizados, “bebendo socialmente” e
conversando como legítimos acadêmicos que receberam uma educação primorosa.
Logo fomos fazendo jarras de bebidas realmente alcóolicas e distribuindo pela
festa. Uma mesa de baralho foi acionada e a gritaria do Truco começou. Rock n’roll
na vitrola e agora estávamos em uma legítima festa universitária. Não demorou
uma hora para o ambiente virar de ponta cabeça. Todos conversando -
praticamente gritando, alguns copos e pratos quebrando e aquela louca euforia
juvenil. Alguém teve a ideia de fazermos um baile, e por aquelas horas, um
baile no mínimo freak. Após as danças
mais bizarras e as músicas mais agitadas, começou o mela-cueca. Casaizinhos
colados mais se esfregando do que dançando, assim como nos bailinhos que nossos
pais faziam pelos anos 70. Logo trocavam o meio do salão para os cantos e
paredes mais escuras.
Eis que retiro minha musa para
dançar. Para mim, na minha “cabacisse”, seria apenas uma chance de chegar perto
de meu objeto de desejo, que até aquele momento existia somente em minha
imaginação e sonhos. Era a “chance” de tocá-la, sentir seu calor e perfume. E
foi muito mais do que minha vã imaginação poderia criar. Foram minutos mágicos,
de uma intensidade inebriante. De repente tudo sumiu naquele salão. Eu não
estava mais em uma festa com outras tantas pessoas bêbadas. Era eu e minha
deusa flutuando em um limbo temporário. Para mim esta dança bastava, era muito
mais do que eu imaginava um dia desfrutar.
Mas foi além. Quando consegui olhar em seu rosto e ver aqueles olhos
amendoados fitando-me, entrei em êxtase, minha consciência sumiu e quando me dei
conta do que estava acontecendo, ela beijou-me loucamente. Além de linda, sexy,
inteligente, era devassa. Enlouqueci enquanto ela praticamente engolia-me num
beijo ensandecido. Nossos corpos fundiram-se em pleno salão.
Depois daquela reação química
explosiva, inexplicável, sentamos e conversamos muito. Sobre tudo. E cada
palavra que saia daquela linda boca se tornava poesia, fascinava pela forma
como se articulava, como seu pensamento era vivo e perspicaz. Havia senso
crítico ali, bom humor e nenhuma vaidade. Ela era assim, não forçava ser outra
coisa, parecer diferente ou impressionar. A sedução estava em seu sangue, em
cada pedaço de seu corpo e em cada gesto, olhar ou ação. Ou era apenas meu
deslumbramento que atingia níveis inimagináveis.
E foi ai que me perdi. Cheguei
onde imaginava nunca chegar. Experimentei a droga mais potente que há em
nossa civilização judaico-cristã: a paixão romântica. A paixão-droga, aquela
que repentinamente te tira da realidade e proporciona prazeres intensos e
voláteis, que causa uma abstinência terrível ao faltar. Por minutos é como se
tudo fizesse sentido, toda a angústia e dores do mundo sumissem. Você projeta
um futuro sem sofrimento só pela presença de seu objeto. Sua ausência causa
terror e sua proximidade pânico. Neste caso ausência significaria rejeição. “Estávamos
bêbados, e se ela não quiser mais?”. Este pensamento colocava-me em pavor. Como
chegar perto novamente? O que fazer?
No outro dia minha vontade era
correr, sumir, ficar longe daquela substância tão poderosa que fez meu mundo
desaparecer. Fez esquecer por minutos quem eu era e o que fazia ali. Por um
instante desapareceu o menino tímido e fechado, porém sem a droga, tudo voltaria
novamente: a dificuldade em relacionar-se, em exprimir o que queria e sentia, a
falta de iniciativa e melancolia. Eu precisaria daquelas sensações novamente
para achar que eu era normal, que era extremamente confiante e sedutor. Ao lado
dela eu seria um super-homem, o “cara”, e conseguiria tudo o que desejasse.
Teria forças para enfrentar o mundo e todas suas adversidades. Teria planos,
realizaria sonhos e caminharia sempre para algo melhor. Mas sem ela eu era
nada. Triste, fechado e complacente com minhas incapacidades em realizar-se.
Era isso que assustava. E foi isso que me levou longe dela. Fugi,
pois aquela realidade era intensa demais. Era meu desejo em sua concretude
extrema. Era um poder maior do que eu e minha simples existência. Retirei-me
novamente para meu casulo e ali permaneci por anos culpando-me por não ter
conseguido resistir à angústia e ter transformado aquele sonho colorido em uma
realidade próxima e tranquila. A idealização fugia do controle. E o sentir foi real
demais para mim.