sábado, 19 de junho de 2021

Lucidez

Certa manhã, Jonas acordou de sonhos loucos e percebeu uma estranha sensação, que talvez nunca havia sentido antes: de querer estar lúcido.

Explica-se. Jonas nunca suportou sua realidade. Para falar a verdade, ele praticamente não a vivenciava há muito tempo. Sempre estava absorto em seus pensamentos e devaneios, olhando para o nada e imaginando tudo. Planejando cada momento seguinte com uma riqueza de detalhes impressionantes.

O que falar, o que pensar, qual próximo passo a dar. Tudo era meticulosamente imaginado para que acontecesse o mais perfeito possível. E aí as frustrações.

Certa vez ouviu de seu analista que "Deus ria de cada ação sua planejada". Isso o quebrava. A realidade era dura demais para Jonas, que não dispensava medidas paliativas para amenizar o seu sofrimento.

Embora fosse um profissional até exemplar, que não perdia dias de trabalho ou dava desculpas estapafúrdias para não ir trabalhar, alternava os períodos de trabalho com longas sessões contemplativas de álcool, tabaco outras coisas mais. Era o seu momento favorito.

Sentia o passar do dia de forma pesada. Seus pensamentos o castigavam. Só pensava na hora de chegar em casa, jogar-se no sofá, fazer a primeira dose de destilado e um cigarro. E só.

Duke Ellington na vitrola, a janela escancarada para a vista da cidade. Ali, enquanto o álcool começava a entrar em suas veias, sentia sua mente esvaziar aos poucos. O sax de Coltrane derretendo seus ouvidos. As luzes dos prédios acendendo lentamente, até a escuridão chegar. De repente não havia mais aqueles devaneios loucos a lhe torturar.

Após duas doses era outra pessoa: falante, articulado, criativo e, acima de tudo. Ativo. Sua passividade diante das imposições da vida lhe faziam deprimir. Desistia de tudo logo no início. Mas alcoolizado não. Topava tudo, iniciava planos loucos e ria como um desgraçado.

No outro dia a ressaca era dupla: a abstinência do álcool lhe corroendo e sua moral obsessiva condenando. A volta ao real era terrível. Acordar já se achando um merda, que terá outro dia bosta, aguardando apenas a hora de chegar em casa para tornar-se novamente o super-homem alcoolizado.

Mas naquele dia não. Ele acordou estranho. Aquela angústia que já inicia com o abrir dos olhos foi substituída por uma sensação de dever. De levantar logo, fazer um café forte, sentar em frente ao computador e escrever. Escrever sem parar até sentir seus dedos estalarem.

Resolver todos os impasses de sua vida. Retomar os projetos que faziam sentido, e que haviam sido abandonados. Ligar para a Rose - a única mulher que demonstrou interesse nele nos últimos anos, e cujo pensamento nela, torturava Jonas por não saber como abordá-la. Parecia uma luz, uma saída após um longo túnel escuro e frio. Quem sabe o sol nascia finalmente para Jonas, após anos de perdição.

Trilha Sonora: "Duke Ellington & John Coltrane (1963)"; "Silent Lucidity" - Queensryche

sexta-feira, 11 de junho de 2021

O Rato no Armário

Havia um rato em meu armário. Isso era somente um fato, que me conduziu à um dilema moral e existencial. 

A primeira vez que ele havia entrado, foi através de um espaço entre as portas, provavelmente atrás do saco de ração. Ao constatar a invasão e o surrupio da ração, retirei o saco do armário. Mas ainda havia como entrar lá. 

Em uma noite ouvi o larápio novamente dentro armário. E por uma curiosidade momentânea, resolvi testar o fechamento da porta - que eu acreditava não ser possível. Com um pequeno ajuste, as duas portas se fecharam. E o rato lá ficou. 

Passou-se dois dias e para a minha surpresa ouvi o rato novamente, roendo, de dentro do armário. Pensei que ele já havia conseguido escapar, afinal ratos sempre conseguem uma brecha, fazem um buraco e escapam. Mas não, o rato estava lá. 

Aí começou o meu dilema. Que logo se tornou um martírio. O rato conseguiria escapar do armário? O que fazer? Abrir as portas e tentar enfrentá-lo, sabendo que provavelmente ele fugiria rapidamente antes de eu conseguir golpeá-lo, abrindo a possibilidade de ele voltar a me atormentar? Deixá-lo ao desdém, passando fome e sede, propiciando uma morte lenta e agonizante?

No outro dia fiquei pensando o que fazer. No fundo eu queria que o rato saísse sozinho de lá. Seria a saída mais fácil: eu não o enfrentaria e nem saberia se ele iria voltar ou não. Talvez não, e tudo estaria resolvido. Mas se e ele voltasse? Ele já comeu a ração, encheu de fezes e urina por todo o armário. Ele era um inimigo a ser eliminado.

À noite, já um pouco embriagado, resolvi lhe dar uma chance. Abri as duas portas e saí por cerca de cinco minutos. Era sua única chance. Era como se Deus lhe estivesse dizendo: quer viver, saía agora. Voltei, fechei as portas. Passou-se alguns minutos, ouvi ele novamente roendo o fundo do armário, tentando sair.

Ele deveria estar cerca de quatro dias ali. Por quanto tempo um roedor sobrevive sem água e alimentação?  E o buraco no fundo, conseguiu fazer? Nos dias seguintes eu confesso que esqueci do rato. Não fui mais até o armário. Isso que fazemos quando temos um problema para resolver mas que não somos cobrados, ou que o próprio problema não se amplia ou manifesta-se silenciosamente.

Chegou o final de semana. E de repente me dei conta que talvez o meu problema ainda estivesse lá. Resolvido ou não. O rato estaria lá? Vivo ou morto? Escapou? Só havia uma forma de saber: abrir as portas e procurá-lo debaixo de diversos entulhos. Meu desejo era não encontrá-lo. Mas ele ainda estava lá.

Morto. Encolhido, quase em uma posição fetal, como estivesse procurado o modo mais confortável para esperar o seu destino final. E ali minha ficha caiu.

Covarde. Foi a primeira coisa que pensei e senti. O mais correto teria sido ter o enfrentado, tentado matá-lo e dar-lhe a chance de pelo ter uma morte digna. Ou de escapar, o que seria o mais provável. Seria um duelo com chances iguais. Mas não, preferi virar-lhe as costas, fingir que nada estava acontecendo, enquanto o pobre bicho definhou até a morte. Chegou-se ao resultado. Mas o pior possível.

Logo refleti que normalmente é o que fazemos diante de um problema que inicialmente não sabemos como solucioná-lo. Ou que temos medo.
Protelamos, prorrogamos, procrastinamos, esperando ele resolver-se sozinho, ou que alguém o resolva para nós. E fazemos isso achando ser o mais fácil e confortável.

No caso em tela, a saída mais correta, rápida e digna, era encará-lo de frente, ter ao menos tentado lutar e também ter dado chance ao inimigo, afinal ele fugir também poderia ser uma solução (ou não, ele poderia voltar).

Fiquei pensando em quantas vezes escolhi o caminho mais fácil e menos incomodativo. A tal "Zona de Conforto". De quantos duelos já fugi e o que talvez eu já perdi escolhendo apenas fechar os olhos e "esperar passar". Muitas dessas escolhas podem ter dado em nada, ou ter tido consequências ínfimas. Porém com certeza houveram tantas outras, que ao se escolher fugir do problema, acabei protelando um fim longo e agonizante.

Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
(Preciso me Encontrar - Cartola)