terça-feira, 3 de setembro de 2019

A fuga - ou uma crônica da vida atual

Quando a vida liga o seu modo automático e o passar dos dias torna-se um continuum intercalado por pequenas quebras na rotina. Aquela sensação de estar apenas indo, deixando a vida te levar, sem saber ao certo onde irá dar. 
De repente, nesses intervalos, ter a sensação de que não há outro sentido além de tocar adiante. O tempo corre, e escorre pelas mãos. A fome de viver já não é mais a mesma, embora tente-se lutar todos os dias atrás dela. Onde ela estará?

Eu sei, é preciso matar um leão por dia. Começar tudo de novo a cada momento. Buscar saídas, modos de satisfação. O peso do mundo vai maltratando aos poucos, e tenta-se fugir (ou amenizá-lo) a todo momento.

Satisfações substitutivas, breves fugas da realidade. Tempo desperdiçado no mundo (imaginário) das redes sociais. Viver a vida dos outros. Sonhar com a vida dos outros, enquanto a sua é também emulada nos filtros de fotografia e stories previamente pensados.

Pequenos momentos de diversão planejada, retratados nos posts de viagem ou naquele restaurante estrelado do Tripadvisor  ganham o status de ápice da felicidade. É a recompensa por horas dedicadas e abdicadas devido ao trabalho e a vida frenética. Ilusões (des)necessárias.

O pior é olhar tudo isso e querer achar normal. Ver algum sentido além. E não há. Onde está a essência, se a existência à precede? Esse modo de existir seria o único possível agora?

Onde antes havia subterfúgios, fugas corporais e alguma contemplação, não há mais. Onde construir um novo sentido? A trilha sonora continua tocando, quase sempre presa ao passado. As vezes lutando para resignificar o agora.

Tempos sombrios. O mundo explode inflado pela irracionalidade e o culto à bestialidade. Nunca a ignorância ocupou tão bem um lugar de defesa frente ao absurdo. Acreditar em tudo o que se quer acreditar, menos no real.

As pessoas estão deprimidas por não conseguir (ou querer) sentir. Aí só resta fugir.

Trilha Sonora: 'Without You I'm Nothing (Álbum)" - Placebo.

domingo, 18 de agosto de 2019

Dia de Chuva

Resultado de imagem para sergio reis vol. 2"Nestes verso tão singelo
Minha bela, meu amor
Pra você quero contar
O meu sofrer e a minha dor
Eu sou quem nem o sabiá
Quando canta é só tristeza
Desde o gaio onde ele está

Nesta viola eu canto e gemo de verdade
Cada toada representa uma saudade"

(Tristeza do Jeca - Tonico e Tinoco)



Amanheceu chovendo na chácara. Poderia ser frustrante para uma criança de sete anos, em férias, solto em volta de toda aquela mata de Morretes. Mas eu adorava os dias de chuva. Aliás, desde então eu adoro dias de chuva. 

Quando eu ouvia as primeiras gotas durante a madrugada, eu já sabia. Seria um dia de chuva. Acordava com aquele cheiro gostoso de chuva, de mato molhado, das laranjeiras e limoeiros. A Vó já estava preparando algo para o almoço. Na vitrola tocava Sérgio Reis, Dilarmando Reis, Almir Sater e Cascatinha e Inhana.

Por um longo tempo eu ignorei essas músicas. Mas desde que a Vó se foi, e Morretes se perdeu, toda a vez que ouço cada acorde, é uma emoção que vem novamente à tona. À tarde a Vó ouvia rancheiras. De noite era Ópera. O Vô tinha uma boa definição para músicas mais introspectivas e reflexivas: "é música de chuva".

À tarde, depois do almoço, a Vó se sentava ao lado do som e ficava ouvindo e contemplando a música. Foi com ela e com o pai que eu aprendi a apreciar música. Não basta ligar qualquer música e deixar de fundo. É preciso parar, contemplar, apreciar cada acorde. E as músicas sertanejas que a Vó ouvia não podiam ter sentindo melhor. 

Era o mato molhado. O som alto e calmo com aquelas canções pantaneiras. Eram as crianças mais calmas e tranquilas. Era aquela infância livre e doce que não volta mais. Era dia de inventar uma brincadeira dentro de casa. Poderia ser uma nave intergalática feita em cima da cama. Um navio à deriva pelo oceano. Meus avós, os cachorros, o mato e nada mais....

Trilha Sonora: Sérgio Reis, Vol. 2.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

A Casinha Verde

Para Zenilda Felsinger,


Foi lá naquela casinha verde, situada no Jardim Bela Vista, em Porto União-SC, que eu conheci a Dona Ida. Eu lembro bem até hoje. Eu trazia a Hilda de volta para casa após nossos primeiros encontros. Desde a primeira vez ela perguntava: "quer descer, conhecer meus pais?". Na primeira vez eu recusei. Na segunda senti que aquela história ia desenrolar, e muito ainda. "Sim".

O Seu Hugo fez um interrogatório digno de um policial, como eu esperava que seria. Estava preocupado com quem a filha dele estava saindo. A Ida era só sorrisos, como sempre foi comigo. Foram umas duas horas de papo e chimarrão. E aquela altura, eu já me sentia membro da família.

Foi assim que ela sempre me tratou. Do primeiro minuto ao último. Como um filho, alguém muito próximo.

Eu não tinha como não gostar da Ida. Ela era uma outsider como eu. Alguém que simplesmente se negava a enquadrar-se em uma sociedade tão quadrada e pronta. Ela era do jeito que era. E não dava a mínima para quem não a aceitava.

A Casinha Verde era o tesouro da Dona Ida. Era lá que ela guardava tudo o que achava e considerava belo. Para aqueles que não conhecem o mundo de um acumulador, tudo aquilo que eles guardam tem um significado. Pode ser uma simples embalagem de um sorvete, uma caixa vazia de bombom. Para eles, esta é a lembrança física de algo muito bom e que eles gostariam de guardar como memória. O acumulador ergue barreiras de coisas para tentar ocultar uma dor. Uma dor que possivelmente você também não seria capaz de sentir.

Havia atrás de todos aqueles sorrisos lindos da Ida uma tristeza. Uma tristeza que talvez nós não sejamos capaz de desvendar. Algo que sua doçura e paz ocultavam. A dor do mundo.

Eu que nunca me achei melhor que ninguém, via uma identificação direta com a Ida. Ela sabia das coisas. Ela era muito inteligente, e quem não percebia isso não a conhecia. Toda a vez que a Hilda falava da sua dor de estar longe de sua família, vivendo comigo e Gabi na Lapa, a Ida sempre amenizava: "é a sua vida minha filha. A vida que você escolheu com o seu marido. Você está bem na Lapa".

Eu nunca pude perceber um pensamento negativo se quer na Ida. Ela vivia a vida intensamente, sem bloqueios, sem receios, sem qualquer pudor quanto ao que os outros pensavam sobre ela. E muitos não a compreendiam por ela ser assim. Eu a admirava. Era assim que eu queria ser. E foi assim que eu apreendi com ela como encarar a vida. Sem portas, sem medo de ser feliz.

Naquela tarde de dezembro de 2018, quando eu voltei à Casinha Verde depois de tanto tempo, eu desabei. Seu Hugo havia feito praticamente um santuário. Na parede vários quadros com fotos da Ida desde os 15 anos. Fotos da Cristina, da Hilda, pequenininhas. Momentos sagrados de uma família feliz. Eu vendo tudo aquilo, em tão pouco tempo após sua morte, tive que sair. E rodei pelo bairro do Santa Rosa por alguns minutos até me recompor.

Sim, foi naquela Casinha Verde que uma família construiu sua vida. Foi ali que eu tive a honra de ser aceito como membro dessa mesma família. Foi ali que Ida viveu seus últimos anos. E ali ela deixou sua marca, sua história, sua vida. Saudades.

Trilha Sonora: Black Rebel Motorcycle Club: "Lose Yourself", "Sweet Feeling".