domingo, 3 de fevereiro de 2013

[Conto] A paixão-droga

Não consigo descrever o que senti naquele momento. Foi uma chance, apenas uma. E fugi. Talvez isso já tenha começado da primeira vez que a vi sentada naquele sofá. As pernas dobradas, cabelos longos e soltos, um olhar lânguido e sorriso dissimulado. Pareceu uma cena de filme: eu entrando, meio que perdido sem ter onde ir, esperando encontrar algum conhecido para sentir-me mais familiarizado com o ambiente, e dou de cara com toda aquela beleza esparramada pelo sofá. Dei um “oi” tímido, quase que as palavras não saem da minha boca. Ela voltou o olhar para mim e retribuiu com um “olá” firme e um sorriso que encheu a sala. Tremi, suei frio. E agora?

Fiz de  conta que procurava alguém que não achei e sai da sala. Demorei uns dez minutos para recompor-me e entender minha atitude. Depois daquele “encontro” relâmpago ela tornou-se meu amor platônico, minha “musa imaginária”. Nunca interpretei aquele “oi” sexy como algo concreto. Para minha ingenuidade juvenil ela era assim, sempre simpática com todos. Muito tempo depois pude compreender que ali havia uma brecha e que meu “platonismo” poderia tornar-se algo real. Porém emocionalmente eu era muito imaturo. Era alguém incapaz de acreditar que uma garota como aquela iria querer alguém como eu. Tinha uma autoimagem degenerativa e muito deturpada. Resultado de uma série de perdas e fracassos que minaram minha autoestima.

Mas eis que um dia, quase um ano após essa primeira vez em que nos esbarramos, encontro minha musa em uma festa. Ela já de cabelos mais curtos e um visual “cult”. Por que além de linda e sexy ela era uma intelectual. O que fazia com que eu tremesse mais ainda perto de sua presença. Toda minha inteligência e saber acadêmico – que talvez fosse minha maior qualidade – sumiam perto dela. Porém aquele dia tudo foi diferente.

 Quando chegamos, eu mais meus amigos junkies (só andava com as piores espécies), a festa estava um “porre” (no mau sentido). Quero dizer, todos estavam extremamente comportados e civilizados, “bebendo socialmente” e conversando como legítimos acadêmicos que receberam uma educação primorosa. Logo fomos fazendo jarras de bebidas realmente alcóolicas e distribuindo pela festa. Uma mesa de baralho foi acionada e a gritaria do Truco começou. Rock n’roll na vitrola e agora estávamos em uma legítima festa universitária. Não demorou uma hora para o ambiente virar de ponta cabeça. Todos conversando - praticamente gritando, alguns copos e pratos quebrando e aquela louca euforia juvenil. Alguém teve a ideia de fazermos um baile, e por aquelas horas, um baile no mínimo freak. Após as danças mais bizarras e as músicas mais agitadas, começou o mela-cueca. Casaizinhos colados mais se esfregando do que dançando, assim como nos bailinhos que nossos pais faziam pelos anos 70. Logo trocavam o meio do salão para os cantos e paredes mais escuras.

Eis que retiro minha musa para dançar. Para mim, na minha “cabacisse”, seria apenas uma chance de chegar perto de meu objeto de desejo, que até aquele momento existia somente em minha imaginação e sonhos. Era a “chance” de tocá-la, sentir seu calor e perfume. E foi muito mais do que minha vã imaginação poderia criar. Foram minutos mágicos, de uma intensidade inebriante. De repente tudo sumiu naquele salão. Eu não estava mais em uma festa com outras tantas pessoas bêbadas. Era eu e minha deusa flutuando em um limbo temporário. Para mim esta dança bastava, era muito mais do que eu imaginava um dia desfrutar.  Mas foi além. Quando consegui olhar em seu rosto e ver aqueles olhos amendoados fitando-me, entrei em êxtase, minha consciência sumiu e quando me dei conta do que estava acontecendo, ela beijou-me loucamente. Além de linda, sexy, inteligente, era devassa. Enlouqueci enquanto ela praticamente engolia-me num beijo ensandecido. Nossos corpos fundiram-se em pleno salão.

Depois daquela reação química explosiva, inexplicável, sentamos e conversamos muito. Sobre tudo. E cada palavra que saia daquela linda boca se tornava poesia, fascinava pela forma como se articulava, como seu pensamento era vivo e perspicaz. Havia senso crítico ali, bom humor e nenhuma vaidade. Ela era assim, não forçava ser outra coisa, parecer diferente ou impressionar. A sedução estava em seu sangue, em cada pedaço de seu corpo e em cada gesto, olhar ou ação. Ou era apenas meu deslumbramento que atingia níveis inimagináveis.

E foi ai que me perdi. Cheguei onde imaginava nunca chegar. Experimentei a droga mais potente que há em nossa civilização judaico-cristã: a paixão romântica. A paixão-droga, aquela que repentinamente te tira da realidade e proporciona prazeres intensos e voláteis, que causa uma abstinência terrível ao faltar. Por minutos é como se tudo fizesse sentido, toda a angústia e dores do mundo sumissem. Você projeta um futuro sem sofrimento só pela presença de seu objeto. Sua ausência causa terror e sua proximidade pânico. Neste caso ausência significaria rejeição. “Estávamos bêbados, e se ela não quiser mais?”. Este pensamento colocava-me em pavor. Como chegar perto novamente? O que fazer?

No outro dia minha vontade era correr, sumir, ficar longe daquela substância tão poderosa que fez meu mundo desaparecer. Fez esquecer por minutos quem eu era e o que fazia ali. Por um instante desapareceu o menino tímido e fechado, porém sem a droga, tudo voltaria novamente: a dificuldade em relacionar-se, em exprimir o que queria e sentia, a falta de iniciativa e melancolia. Eu precisaria daquelas sensações novamente para achar que eu era normal, que era extremamente confiante e sedutor. Ao lado dela eu seria um super-homem, o “cara”, e conseguiria tudo o que desejasse. Teria forças para enfrentar o mundo e todas suas adversidades. Teria planos, realizaria sonhos e caminharia sempre para algo melhor. Mas sem ela eu era nada. Triste, fechado e complacente com minhas incapacidades em realizar-se.

Era isso que assustava.  E foi isso que me levou longe dela. Fugi, pois aquela realidade era intensa demais. Era meu desejo em sua concretude extrema. Era um poder maior do que eu e minha simples existência. Retirei-me novamente para meu casulo e ali permaneci por anos culpando-me por não ter conseguido resistir à angústia e ter transformado aquele sonho colorido em uma realidade próxima e tranquila. A idealização fugia do controle. E o sentir foi real demais para mim.