quarta-feira, 10 de agosto de 2005

Reclusão

Ele não trabalhou naquele mês. Acordou um dia em estado de total perdição. Não sentia dor. Não estava com ódio. Não sorria há muito. Só medo. Não ligou para ninguém. Desligou o telefone. Deitou-se na cama e ligou a tv. Por alguma razão não sentia mais as coisas, seu mundo se fechara e sem alternativas reclusou-se em seu pensamento. Tentara em vão interagir, mas algo o impelia a sonhar. E começou com um sonho simples. Sentira que seu corpo desaparecia. Tudo ficou branco. De repente via seu corpo deitado na cama. Logo estava em 1974, via a si próprio brincando com um carrinho, sozinho, as crianças ao seu lado brincavam sem notá-lo. Ao ver esta cena, sentiu uma angústia machucar seu peito. Caiu em lágrimas, era uma visão de sua infância. Sentira novamente uma lembrança que há muito tempo havia ocorrido. Em flashes começou a passar momentos simples de sua vida. Rememorava fatos que o marcaram, mas que de certa maneira não vivenciou. Ele tinha essa impressão. Coisas que foram importantes mas que no momento não pudera experenciar com toda intensidade que deveria causar-lhe. Sempre vivera recluso, em seu mundo isolado, de fantasias, perfeccionista e não adepto a realidade. Naquele mês tudo voltara com sua carga máxima de intensidade. Ao ver a si mesmo percebeu o quanto havia se machucado em sua vida por não querer saber das coisas, das pessoas, de outras vidas que o cercavam. Só, ali parado, sentiu em um mês tudo o que não sentira em todas sua curta existência até então. Lágrimas, confusão, emoções, gritos, desespero. Tudo se misturava e passava como um filme a sua frente. Quis naqueles momentos que acordasse, mudasse o que estava vendo. A mulher da sua vida passou ao seu lado, tentou conversar, mas recluso, não respondeu. E naquele momento ele descobriu que era ela, e que a perdeu. Seu pai tentou se reconciliar de todos os erros cometidos. Ele o ignorou. Quis sair daquele sonho e abraçá-lo, chorar, dizer que o amava. Não podia. Logo passa-se a outra imagem. E outra imagem novamente. Era tarde, naquele dia frio de agosto. Nada poderia se modificar, era o fim de sua pobre existência. Vivida em uma reclusão total.
Trilha Sonora: Modest Mouse "Whenever You Breathe Out, I Breathe In".

terça-feira, 2 de agosto de 2005

Ilusão

Uma vida toda cheia de ilusões. Dias ensolarados lembrados na memória como fotografias velhas, em preto e branco. Imagens de um passado recente distorcidas, histórias mal contadas. Olhar para trás e ... não ver nada. Nada que se possa lembrar como algo realmente vivido. Somente sombras, fantasmas e perdição. Entrega ao desconhecido, aos loucos devaneios que levam somente a lugar nenhum. Tudo, tudo já foi criado, imaginado, pintado, esculpido. Mas e a realidade? Quando foi que esta ficou para trás? O que vale viver assim, sempre com os pensamentos em algum lugar que não este, que não nesta vida que parece ser tão árdua? Viver de ilusões, doces ilusões, porém tão distantes e perdidas em algum fio de memória que ainda luta para permanecer presente. Programar algum futuro. Vivê-lo como se fosse possível, da forma que seria perfeito. Não saber do presente. Este existe? Por que não encará-lo como é: árduo, louco, imprevísivel, descontrolado, porém... tão intenso, real? Por que buscar respostas para questões que não podem ser respondidas? Por que procurar soluções para aquilo que solucionado deixa de significar? Por que dor, angústia, confusão? Se viver é tudo isso, partes disso e outras tantas que não podem ser descritas, por que se iludir?
Trilha Sonora: Travis "The Humpty Dumpty Love Song"