domingo, 23 de outubro de 2016

Vojão

Era uma manhã cinzenta. Aquela cena nunca mais sairia de minha mente. Meu avô descendo do carro. Amarelo. Seu semblante não era de dor. Resignação. Eu nunca o havia visto daquela maneira. Olhar perdido. O soldado finalmente havia batido em retirada.

Os dias iluminados de céu azul da Ucrânia haviam ficado para trás. E minha breve adolescência também. Good bye blue sky. "Os homens bons não morrem. Sobem aos céus para tornarem-se anjos". E o meu anjo se foi naquela tarde de 17 de setembro de 1999.

Ele era o modelo de homem. Meu referencial de ser humano. Era extremamente bondoso, mas ao mesmo tempo justo. Honesto e inteligente. Um tanto quanto ranzinza, e tinha um senso de humor implacável. Abriu-me as portas do mundo ao ensinar-me a ler. Valorizava o saber acima de tudo e sabia o quanto isso transformaria completamente minha vida. Foi meio pai, meio avô. Avôhai. Vojão.

O princípio da juventude havia sido brilhante e delicioso. O mundo se abria com toda sua força e esplendor. A vontade era de apenas viver intensamente, voar, navegar livre em um mar de liberdade e contemplação. Pela primeira vez sentia que podia abrir-me, sair do enclausuramento e encarar a vida de frente. E como em um golpe, ela veio logo com tudo. Seca, dura e incompreensível. Bateu forte e foi embora, levando junto os últimos sopros de inocência e serenidade. 

Os anos que se seguiram foram de escuridão. Incompreensão, revolta e dor. Mergulhado em tristeza, eu via o mundo a minha volta desaparecer e esfalecer-se. A louca felicidade juvenil deu lugar à angustia e encerramento em si mesmo. 

Eu não tinha mais referências. Procurava cegamente uma saída para o quê eu mesmo não conhecia. Apegava-me a quem meramente estendia uma mão, buscando não afundar. Não sei bem como eu sai dessa. Foi a fase mais obscura de minha vida. Foram anos tentando elaborar essa perda que até agora repercute e coloca-me a refletir sobre uma parte do passado que ainda não superei completamente. 

Passaram-se dezessete anos, e essa é a primeira vez que consigo escrever sobre o Seu João, ou melhor, sobre a sua perda. A dor é ainda grande, assim como são as doces lembranças dos anos incríveis que passei junto desse ser iluminado que participou ativamente de minha infância e adolescência, contribuindo para minha formação enquanto homem, ser humano, e agora, pai. Saudades!

Para meu anjo Vojão. Fly on little wing!

Trilha Sonora: "Little Wing" - Jimi Hendrix; "Sailing" - Rod Stewart; "Goodbye Blue Sky" e "Mother" - Pink Floyd; "My Friend of Misery" - Metallica.


Um comentário:

verinha disse...

Maravilhoso ... É comovente seu sentimento ... Muito muito bonito isso de você em relação ao vovó.Parabens