sábado, 23 de outubro de 2021

Let it Feel (deixe sentir)....



 A vida emocionava a minha avó. Lembro até hoje da curtição que foi para ela encontrar uma fita k-7 em que ela havia gravado nossas risadas quando crianças. Ela gostava tanto de crianças que as risadas infantis soavam como magia em seus ouvidos. E a imagem de minha avó, emocionada, ao lado do aparelho de som, rindo, adorando rememorar com tanto prazer um instante que é comum na infância de cada pessoa, e ali eternizado naquela gravação, só faz-me pensar no quanto deixamos de sentir a vida.

Na verdade deixamos de sentir as emoções, afetos e sentimentos que a vida por si só nos proporciona. Levantamos dezenas de muros, barreiras imaginárias, defesas imaturas e infantis, para não sentirmos mais nada. Para parecemos fortes, inabaláveis, controlando a tudo e a todos. Enquanto isso a vida está ai: passando diante dos olhos, com todas suas cores, sons e cheiros. Pena que só alguns dedicam algum tempo a apenas notá-la. 

Você já observou uma criança crescendo? Já reparou na reação que eles tem em cada pequena descoberta? Uma luz piscando, um barulho novo ocorrendo. Uma comida nova. Você ainda consegue lembrar daquela sensação de experimentar algo muito bom pela primeira vez? 

Aquela sensação de maravilhamento vai se perdendo. Parece que a  rotina vai tornando a vida cada vez mais óbvia e repetitiva. Mas será? Coisas novas realmente vão desaparecendo? Ou vamos, cada vez mais, deixando de notá-las, focando-se naquilo que achamos o estritamente necessário, ou o que achamos conseguir dar conta. E o novo? E as outras possibilidades?

Considerava minha avó uma sábia. Ela era muito mais inteligente que eu, tendo estudado apenas até a 5ª série. Era daquelas pessoas cuja sabedoria estava em justamente entender a felicidade. Em saber, e realmente compreender, que o prazer estava em tudo, e que tudo já lhe estava dado. Bastava você procurar, perceber, deixar sentir, e acontecer.

A vida não acontece no Instagram. Ela não permite poses e encenações. Não acontece apenas no belíssimo pôr-do-sol ou naquela linda cachoeira. Não está apenas no bar legal com parede pintada com asas para aquela selfie libertadora.  Ela só acontece. E não para.

A risada gostosa da criança. O bolo de fubá no café da manhã. O dia chuvoso para descansar. O Luizinho maravilhado com o tocador de vinil. O prazer está ai também. Muito mais próximo e real do que a foto nas Maldivas que você tanto sonha em tirar. Só basta olhar. E deixar sentir...

Trilha Sonora: "The Height" - The Band.


sábado, 19 de junho de 2021

Lucidez

Certa manhã, Jonas acordou de sonhos loucos e percebeu uma estranha sensação, que talvez nunca havia sentido antes: de querer estar lúcido.

Explica-se. Jonas nunca suportou sua realidade. Para falar a verdade, ele praticamente não a vivenciava há muito tempo. Sempre estava absorto em seus pensamentos e devaneios, olhando para o nada e imaginando tudo. Planejando cada momento seguinte com uma riqueza de detalhes impressionantes.

O que falar, o que pensar, qual próximo passo a dar. Tudo era meticulosamente imaginado para que acontecesse o mais perfeito possível. E aí as frustrações.

Certa vez ouviu de seu analista que "Deus ria de cada ação sua planejada". Isso o quebrava. A realidade era dura demais para Jonas, que não dispensava medidas paliativas para amenizar o seu sofrimento.

Embora fosse um profissional até exemplar, que não perdia dias de trabalho ou dava desculpas estapafúrdias para não ir trabalhar, alternava os períodos de trabalho com longas sessões contemplativas de álcool, tabaco outras coisas mais. Era o seu momento favorito.

Sentia o passar do dia de forma pesada. Seus pensamentos o castigavam. Só pensava na hora de chegar em casa, jogar-se no sofá, fazer a primeira dose de destilado e um cigarro. E só.

Duke Ellington na vitrola, a janela escancarada para a vista da cidade. Ali, enquanto o álcool começava a entrar em suas veias, sentia sua mente esvaziar aos poucos. O sax de Coltrane derretendo seus ouvidos. As luzes dos prédios acendendo lentamente, até a escuridão chegar. De repente não havia mais aqueles devaneios loucos a lhe torturar.

Após duas doses era outra pessoa: falante, articulado, criativo e, acima de tudo. Ativo. Sua passividade diante das imposições da vida lhe faziam deprimir. Desistia de tudo logo no início. Mas alcoolizado não. Topava tudo, iniciava planos loucos e ria como um desgraçado.

No outro dia a ressaca era dupla: a abstinência do álcool lhe corroendo e sua moral obsessiva condenando. A volta ao real era terrível. Acordar já se achando um merda, que terá outro dia bosta, aguardando apenas a hora de chegar em casa para tornar-se novamente o super-homem alcoolizado.

Mas naquele dia não. Ele acordou estranho. Aquela angústia que já inicia com o abrir dos olhos foi substituída por uma sensação de dever. De levantar logo, fazer um café forte, sentar em frente ao computador e escrever. Escrever sem parar até sentir seus dedos estalarem.

Resolver todos os impasses de sua vida. Retomar os projetos que faziam sentido, e que haviam sido abandonados. Ligar para a Rose - a única mulher que demonstrou interesse nele nos últimos anos, e cujo pensamento nela, torturava Jonas por não saber como abordá-la. Parecia uma luz, uma saída após um longo túnel escuro e frio. Quem sabe o sol nascia finalmente para Jonas, após anos de perdição.

Trilha Sonora: "Duke Ellington & John Coltrane (1963)"; "Silent Lucidity" - Queensryche

sexta-feira, 11 de junho de 2021

O Rato no Armário

Havia um rato em meu armário. Isso era somente um fato, que me conduziu à um dilema moral e existencial. 

A primeira vez que ele havia entrado, foi através de um espaço entre as portas, provavelmente atrás do saco de ração. Ao constatar a invasão e o surrupio da ração, retirei o saco do armário. Mas ainda havia como entrar lá. 

Em uma noite ouvi o larápio novamente dentro armário. E por uma curiosidade momentânea, resolvi testar o fechamento da porta - que eu acreditava não ser possível. Com um pequeno ajuste, as duas portas se fecharam. E o rato lá ficou. 

Passou-se dois dias e para a minha surpresa ouvi o rato novamente, roendo, de dentro do armário. Pensei que ele já havia conseguido escapar, afinal ratos sempre conseguem uma brecha, fazem um buraco e escapam. Mas não, o rato estava lá. 

Aí começou o meu dilema. Que logo se tornou um martírio. O rato conseguiria escapar do armário? O que fazer? Abrir as portas e tentar enfrentá-lo, sabendo que provavelmente ele fugiria rapidamente antes de eu conseguir golpeá-lo, abrindo a possibilidade de ele voltar a me atormentar? Deixá-lo ao desdém, passando fome e sede, propiciando uma morte lenta e agonizante?

No outro dia fiquei pensando o que fazer. No fundo eu queria que o rato saísse sozinho de lá. Seria a saída mais fácil: eu não o enfrentaria e nem saberia se ele iria voltar ou não. Talvez não, e tudo estaria resolvido. Mas se e ele voltasse? Ele já comeu a ração, encheu de fezes e urina por todo o armário. Ele era um inimigo a ser eliminado.

À noite, já um pouco embriagado, resolvi lhe dar uma chance. Abri as duas portas e saí por cerca de cinco minutos. Era sua única chance. Era como se Deus lhe estivesse dizendo: quer viver, saía agora. Voltei, fechei as portas. Passou-se alguns minutos, ouvi ele novamente roendo o fundo do armário, tentando sair.

Ele deveria estar cerca de quatro dias ali. Por quanto tempo um roedor sobrevive sem água e alimentação?  E o buraco no fundo, conseguiu fazer? Nos dias seguintes eu confesso que esqueci do rato. Não fui mais até o armário. Isso que fazemos quando temos um problema para resolver mas que não somos cobrados, ou que o próprio problema não se amplia ou manifesta-se silenciosamente.

Chegou o final de semana. E de repente me dei conta que talvez o meu problema ainda estivesse lá. Resolvido ou não. O rato estaria lá? Vivo ou morto? Escapou? Só havia uma forma de saber: abrir as portas e procurá-lo debaixo de diversos entulhos. Meu desejo era não encontrá-lo. Mas ele ainda estava lá.

Morto. Encolhido, quase em uma posição fetal, como estivesse procurado o modo mais confortável para esperar o seu destino final. E ali minha ficha caiu.

Covarde. Foi a primeira coisa que pensei e senti. O mais correto teria sido ter o enfrentado, tentado matá-lo e dar-lhe a chance de pelo ter uma morte digna. Ou de escapar, o que seria o mais provável. Seria um duelo com chances iguais. Mas não, preferi virar-lhe as costas, fingir que nada estava acontecendo, enquanto o pobre bicho definhou até a morte. Chegou-se ao resultado. Mas o pior possível.

Logo refleti que normalmente é o que fazemos diante de um problema que inicialmente não sabemos como solucioná-lo. Ou que temos medo.
Protelamos, prorrogamos, procrastinamos, esperando ele resolver-se sozinho, ou que alguém o resolva para nós. E fazemos isso achando ser o mais fácil e confortável.

No caso em tela, a saída mais correta, rápida e digna, era encará-lo de frente, ter ao menos tentado lutar e também ter dado chance ao inimigo, afinal ele fugir também poderia ser uma solução (ou não, ele poderia voltar).

Fiquei pensando em quantas vezes escolhi o caminho mais fácil e menos incomodativo. A tal "Zona de Conforto". De quantos duelos já fugi e o que talvez eu já perdi escolhendo apenas fechar os olhos e "esperar passar". Muitas dessas escolhas podem ter dado em nada, ou ter tido consequências ínfimas. Porém com certeza houveram tantas outras, que ao se escolher fugir do problema, acabei protelando um fim longo e agonizante.

Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
(Preciso me Encontrar - Cartola)

domingo, 27 de setembro de 2020

Este texto não é sobre um adeus...

 "A única constante na vida é a mudança". Não sou adepto de frases motivacionais. Mas esta máxima resume a dinâmica da vida. Ela simplesmente deve acontecer, e para isso precisamos deixá-la seguir o seu rumo. 

Daqui há sete dias estarei retornado à Porto União. Essa semana foi intensa demais. Em meio à mudança de casa, uma pandemia em curso, dois filhos em quarentena, despedidas incompletas... 

Hoje deveria estar acontecendo uma festa daquelas no Bar do Vinil - cantinho que com tanto amor eu montei para ouvir meus discos, receber meus amigos e familiares e onde aconteceram festas legendárias! Mas devido a essa maldita pandemia não poderei me despedir da forma que mais gostaria: com festa, com todos ao redor da churrasqueira, risadas e alegria. A vida é uma festa! (assim descrevi um capítulo de minha dissertação).

Foram oito anos vivendo na querida Lapinha. Cidade que me acolheu de braços abertos quando cheguei. Lembro do primeiro passeio que fiz com a Hilda e o Floquinho (naquela época a nossa família tinha só três membros!), logo depois de terminada a nossa mudança. Era Festa de Santo Antônio e nos surpreendemos de estarmos morando ao lado da Praça onde ocorria.

O primeiro dia de trabalho no antigo Fórum. Eu sentia-me como um alienígena. Muitos se perguntavam o que um psicólogo estava fazendo ali. E foi ali que fui calorosamente recebido por muitos: a Gracia e sua família (que logo me convidou para a tradicional festa junina na chácara de seu pai), o Ivacir e sua simpatia contagiante, a Flavinha da qual a incubiram de me passar o que seria o trabalho (ela já era a referência de infância na Comarca). A Adri, a Daí, a Carla, o Fio, o Dr. Paulo (figura ímpar) e logo fiz um grande amigo, Rafael. Na sequencia vieram Ge, Juliana, Giovane, Dila. Todos amigos para uma vida (sinto não poder citar todos que fizeram parte dessa história).

Fui o primeiro psicólogo da Comarca e tive que começar do zero a construir um referencial e um norte para a atuação. Nesse início o pessoal do CREAS foram fundamentais: Liziane, Dika, João, Rosângela, Aracéli (e outros tantos) que me cederam uma sala para os atendimentos. Muito estudo, trabalho e quebrar a cabeça para fazer um novo serviço começar. Foram anos riquíssimos, experiências únicas.

Veio o Fórum novo. Lindo, duas salas enormes com ar condicionado (um luxo, como diria Dr. Paulo!). E eu sozinho ainda. Veio a Cristiane de Rio Negro, em um momento delicado de sua vida. Permuta com a Cintia e logo tínhamos uma equipe! (hoje completa com a chegada da Aline).

Nesse meio tempo organizei o fluxo de atendimento às vítima de violência sexual a partir do Protocolo de Contenda (que considero a grande realização do meu trabalho na Comarca da Lapa). Marilisa, Kelly, Pâmela, Ivan, Rubi, Cris e toda a Rede de Proteção de Contenda confiaram no meu trabalho de consultoria e hoje o Protocolo é Lei Municipal! 

Ao mesmo tempo que o trabalho foi se desenvolvendo e crescendo, fiz outros queridos amigos (Teko e Bel, Aleson, Nogueira, Alessandro, Wilian), colegas que passaram e se foram. Logo nossa família foi acolhida pelas famílias de nossos amigos . A Gabi nasceu e foi estudar no Educandário. Agora chegou o Luizinho. Ambos lapeanos. Criei raízes aqui das quais sempre retornarei para revê-las.

Essa é a minha terceira mudança. A primeira de Curitiba para União da Vitória foi simples e aliviante. Parti com meu Ford Ka e uma mala (cheia de ilusões, como na música dos Mutantes). Iniciei minha vida profissional lá e conheci a mulher de minha vida. 

Nossa segunda mudança não foi difícil. Já foi um caminhãozinho com algumas mobílias. Jovens, cheio de sonhos e planos, sem medo de viver a vida e construir uma história. E foi uma linda história aqui! Cheia de afeto, trabalho, alegrias e também perdas. Mas completa. Nossa família cresceu, nós envelhecemos um pouco e agora precisamos seguir.

Por isso essa terceira mudança não está sendo tão fácil. Em meio a uma pandemia, acelerada por questões de trabalho e com pequenas despedidas abruptas. Agora será um caminhão grande, quatro pessoas, dois cachorros e muita tralha! 

Gostaria de que essa mudança fosse com muitas festas, abraços, churrascos e muita cerveja! Mas terá que ser assim. O que não significa que não voltarei para fazer as festas após a pandemia (e arrumem lugar para isso meus amigos!).

Partiremos da querida Lapinha com os corações cheios de esperança e ao mesmo tempo já com muitas saudades de todos que aqui conhecemos e hoje amamos. Pessoas, histórias, lugares incríveis que aqui conhecemos. E voltaremos muitas vezes para nos reencontrar (assim como os quero em Porto União!).

Por isso que esse texto não é sobre um adeus, mas sobre um até logo... e muita gratidão!


Fuga nº. II (Os Mutantes)

Pôr-do-sol no Fórum da Lapa

Hoje eu vou fugir de casa
Vou levar a mala cheia de ilusão
Vou deixar alguma coisa velha
Esparramada toda pelo chão
Vou correr num automóvel enorme e forte
A sorte e a morte a esperar
Vultos altos e baixos
Que me assustavam só em olhar
Pra onde eu vou, ah
Pra onde eu vou, venha também
Pra onde eu vou, venha também
Pra onde eu vou


terça-feira, 3 de setembro de 2019

A fuga - ou uma crônica da vida atual

Quando a vida liga o seu modo automático e o passar dos dias torna-se um continuum intercalado por pequenas quebras na rotina. Aquela sensação de estar apenas indo, deixando a vida te levar, sem saber ao certo onde irá dar. 
De repente, nesses intervalos, ter a sensação de que não há outro sentido além de tocar adiante. O tempo corre, e escorre pelas mãos. A fome de viver já não é mais a mesma, embora tente-se lutar todos os dias atrás dela. Onde ela estará?

Eu sei, é preciso matar um leão por dia. Começar tudo de novo a cada momento. Buscar saídas, modos de satisfação. O peso do mundo vai maltratando aos poucos, e tenta-se fugir (ou amenizá-lo) a todo momento.

Satisfações substitutivas, breves fugas da realidade. Tempo desperdiçado no mundo (imaginário) das redes sociais. Viver a vida dos outros. Sonhar com a vida dos outros, enquanto a sua é também emulada nos filtros de fotografia e stories previamente pensados.

Pequenos momentos de diversão planejada, retratados nos posts de viagem ou naquele restaurante estrelado do Tripadvisor  ganham o status de ápice da felicidade. É a recompensa por horas dedicadas e abdicadas devido ao trabalho e a vida frenética. Ilusões (des)necessárias.

O pior é olhar tudo isso e querer achar normal. Ver algum sentido além. E não há. Onde está a essência, se a existência à precede? Esse modo de existir seria o único possível agora?

Onde antes havia subterfúgios, fugas corporais e alguma contemplação, não há mais. Onde construir um novo sentido? A trilha sonora continua tocando, quase sempre presa ao passado. As vezes lutando para resignificar o agora.

Tempos sombrios. O mundo explode inflado pela irracionalidade e o culto à bestialidade. Nunca a ignorância ocupou tão bem um lugar de defesa frente ao absurdo. Acreditar em tudo o que se quer acreditar, menos no real.

As pessoas estão deprimidas por não conseguir (ou querer) sentir. Aí só resta fugir.

Trilha Sonora: 'Without You I'm Nothing (Álbum)" - Placebo.